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Barreiras estruturais e sociais impõem limitações às pessoas com deficiência
Praias, shopping centers, academias, escolas, universidades. Nesses locais, já ouvimos frases como “aqui não é lugar para pessoa com deficiência frequentar” ou “essa pessoa tem que procurar um lugar adequado pra ela”. Falas e pensamentos como esses expressam o capacitismo, ou seja, a discriminação de pessoas com deficiência. Para ajudar a combater essa prática, a campanha “Discriminação não cabe na UFSCar. Aprenda, ensine: Violência é crime” aborda agora o assunto. A iniciativa é da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
“Capacitismo é a prática de colocar sobre um único sujeito toda uma responsabilidade de pertencimento que, na verdade, deve ser coletiva e interdependente entre as pessoas que constituem e constroem diariamente uma determinada realidade (escolar, profissional, familiar, cultural, de lazer, de esporte etc.). Assim, se uma pessoa com deficiência acessa um ambiente e, nele, não tem autonomia, não se trata de uma incapacidade pessoal e/ou incompetência. Se essa pessoa enfrenta barreiras nesse lugar, é certo que ele não está organizado de maneira interdependente e cooperativa para a coparticipação, corresponsabilização e emancipação coletiva”, explica Leonardo Santos Amâncio Cabral, professor do Departamento de Psicologia (DPsi) da UFSCar.
“Muitas vezes, esse preconceito não é percebido nem por quem pratica e nem por quem é vítima, tornando assim muito difícil de combater”, completa Jorgeane da Mota Trindade de Oliveira, autista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi) da UFSCar. “Mas posso dizer que o mais difícil é a sociedade subestimar a capacidade da pessoa com deficiência não lhe dando oportunidades. Além disso, a tendência é colocar essa pessoa como preguiçosa, sem força de vontade, ‘não faz porque não quer’. Toda deficiência traz suas limitações. Nós não somos apenas um diagnóstico, o diagnóstico não define nossas capacidades, mas as barreiras impostas pela sociedade. No Brasil o que mais sofremos são com as barreiras atitudinais”, explica a estudante da UFSCar.
“O autismo é caracterizado por déficits persistentes na comunicação social e na interação, e déficits na comunicação social”, explica a pesquisadora. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM 5, citado por ela, o autismo é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento, isso quer dizer que ele precisa estar presente ainda no início da infância do indivíduo. Ainda de acordo com o DSM 5, o autismo é classificado em três níveis de suporte: o nível 1 exige apoio, no nível 2 apoio substancial, e no nível 3 apoio muito substancial.
“Sendo nível de suporte 1, passei no vestibular depois da sétima tentativa. Era uma criança quieta e muito calada. Isso, na década de 1980 e 1990, era o esperado. Mas sempre tive uma ingenuidade e sinceridade muito sem filtro, comum em nós autistas. Não sentia falta de estar com muitas pessoas. Na minha graduação assim como na época de escola, eu passava mal com os barulhos, sempre com ânsia de vômito e dor de barriga. Um cansaço que parece que nunca vai acabar. Sempre estava na biblioteca, estudando e lendo. Porém, crescer sentindo tanta coisa e sempre tentando me igualar a meus pares trouxe muito sofrimento e adoecimento”, conta Oliveira. “Apenas com o diagnóstico do meu filho em 2018 foi levantada a possibilidade de eu também ser autista. Naquela época, eu estava tomando cinco medicações – para dormir, acordar, para ansiedade, depressão e modulador de humor”, continua.
Segundo ela, “é comum que profissionais da área de Saúde Mental incorram em equívocos nos diagnósticos quando a pessoa é do nível 1 de suporte. Foi o que aconteceu comigo. Mas em 2020, quando eu tinha 40 anos, consegui passar com uma psiquiatra que tem especialidade em atender pessoas autistas e outras condições. Foi uma consulta de quase três horas. Fiquei muito cansada, e eu havia falado a ela que estava exausta. Ela concluiu dizendo: ‘Você é uma pessoa autista, nível 1 de suporte e provavelmente com altas habilidades – nunca avaliei para isso. Sinto muito que você tenha passado por tantos profissionais que não conseguiram ver que você é uma pessoa autista.’ O diagnóstico não mudou quem eu sou, mas mudou meu olhar sobre mim e sobre minhas potencialidades, me ver além da deficiência”.
Formas de deficiência e estigma
O autismo é apenas uma forma de deficiência, que pode ser física, intelectual e sensorial, como explica o docente da UFSCar. Além disso, há as pessoas com deficiências múltiplas, quando estão combinadas duas ou mais deficiências. “Então, o indivíduo pode ter deficiência intelectual e ser pessoa com deficiência física”, exemplifica o professor. Além disso, temos as pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) que não são pessoas com deficiência, mas com os mesmos direitos legais de pessoa com deficiência”, esclarece o professor.
“Estamos lidando com pessoas que historicamente foram estigmatizadas, infantilizadas, coisificadas, objetificadas, colocadas como exóticas na sociedade. Muitas vezes as pessoas com deficiência, mesmo enquanto adultas, não são vistas como adultas: elas são infantilizadas e, inclusive, assexuadas, como se elas também não tivessem gênero, como se elas não fossem capazes. Isso se enquadra na discriminação, no capacitismo, pois elas podem construir uma família, serem autônomas, serem excelentes profissionais. Hoje, temos uma ascensão de pessoas com deficiência ingressando nas instituições de Ensino Superior e, ainda assim, a perspectiva de muitos professores tem sido atravessada pelo capacitismo, pela falta de informação, pelo estranhamento da diferença e isso vai impactando os métodos e as formas de avaliar o sujeito profissional nas diversas áreas do conhecimento. Então, é importante falarmos de capacitismo para pensarmos como podemos garantir os direitos humanos das pessoas com deficiência, inclusive nos ambientes educacionais, profissionais, de lazer, culturais e em todas as outras dimensões sociais que todos devemos ter acesso e que é uma condição constitucional”.
A estudante da UFSCar concorda: “Como se tratam de condições ‘invisíveis’, e até mesmo pelo estigma da condição, são pessoas que podem ter um sentimento de inadequação e ter uma certa dificuldade em fazer e manter amigos. Na realidade, não é uma dificuldade em fazer e manter amigos, são cérebros que não veem muito sentido em coisas que a maioria vê. Isso não dá o direito a ninguém de recriminar a forma de ser e estar no mundo daquela pessoa. Mas entendo que esse assunto é difícil para pessoas que não são neurodivergentes ou não tenham outra deficiência compreender. É algo que levará algum tempo para que possamos chegar num denominador comum, o respeito a todos”.
“Nada sobre nós sem nós”
Para o professor da UFSCar, “o próprio fato de hoje estarmos falando sobre capacitismo em agendas anuais que demarcam o dia da pessoa com deficiência já é um avanço. Parece pouco, mas essa vitrine que tem sido representada e valorizada, inclusive, nas mídias sociais por pessoas com e sem deficiência falando sobre as pessoas com deficiência. O lema Nada sobre nós sem nós’, que nasce na década de 1960 com os movimentos estudantis, norteou a elaboração da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência em 2006, que foi referendada no Brasil em 2009. Assim, as pessoas com deficiências têm conquistado seus protagonismos em suas próprias histórias, nos diversos espaços da sociedade, inclusive com políticas de ações afirmativas”, celebra o professor.
Mas ainda há muito por fazer. Para ele, os principais desafios têm a ver com a transformação cultural sobre a compreensão do que é ser alguém com deficiência. “Recentemente, uma pessoa de uma instituição jurídica entrou em contato comigo pedindo indicação de uma pessoa com deficiência para dar uma palestra sobre os direitos dessa população. Foi um pedido a ‘toque de caixa’. Então, indiquei uma pessoa com mestrado acadêmico e com carreira profissional de mais de 10 anos. Porém, ao saberem que essa pessoa utiliza cão-guia, desconsideraram-na com o argumento de que sua passagem aérea seria mais cara e os trâmites seriam mais burocráticos. É como se a pessoa com deficiência fosse mais cara, inclusive, o que não é verdade. Esse ato pode ser considerado discriminação com base na deficiência. Muitas coisas têm mais a ver com acessibilidade atitudinal do que qualquer outra coisa. Não se trata de questão financeira, patrimonial etc.”, exemplifica.
A doutoranda da UFSCar reforça a necessidade de transformação do meio em algo acolhedor, sem barreiras. “Somos pessoas com deficiência (no caso do autismo para fins legais), fazemos parte da sociedade e interagimos com o meio. Mas o meio ainda está em transformação, ainda não é acolhedor a todos os corpos e mentes diferentes. É um meio que precisa se transformar para acolher a todos de maneira equitativa, do contrário, a deficiência do meio em nos atender sempre será nossa principal barreira para poder estar onde queremos estar”.
E como as pessoas podem contribuir para combater o capacitismo e cultivar uma cultura mais acolhedora para pessoas com deficiência? “Informação”, responde a doutoranda da UFSCar. “Essa é a palavra que para a comunidade PcD [sigla frequentemente utilizada para Pessoa com Deficiência] se torna uma das mais importantes na luta contra o capacitismo. Todos nós, em algum grau, fomos ou somos capacitistas. Para combater isso, busque informação. Se tem dúvida sobre o assunto, pergunte à própria pessoa com deficiência; se tiver vergonha de perguntar, procure pessoas que trabalham ou conhecem nossa luta. Mas nunca deduza que você conhece mais da deficiência dessa pessoa do que ela própria. Seja qual for o diagnóstico dela, esse diagnóstico faz parte da vida dela, um ou vários profissionais habilitados lhe deram o diagnóstico. Alunos, funcionários e professores, acolham o diferente, tentem conhecer esse universo tão singular e rico que é o das pessoas com deficiência. Vão se surpreender!”.
Serviço
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146), em seu Art. 2º, considera pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Ainda segundo a Lei, discriminar pessoa com deficiência é crime. Por isso, em caso de emergência, acione a Polícia Militar pelo Disque 190. Se o crime já aconteceu, procure uma autoridade policial para registrar a ocorrência.
Sobre a campanha “Discriminação não cabe na UFSCar”
A campanha “Discriminação não cabe na UFSCar. Aprenda, ensine: Violência é crime” é uma estratégia para realizar um movimento educativo com a comunidade, a fim de que todas as pessoas possam perceber o quanto são violentas em suas atitudes cotidianas, mudando seu comportamento. Ela também tem o papel de mostrar que qualquer ato de violência é passível de investigação e punição perante a lei.
A Campanha apresenta temas diversos: racismo, transfobia, machismo, gordofobia, etarismo, assédio e capacitismo. Os conteúdos estão sendo veiculados no Portal da UFSCar e nas redes da UFSCar Oficial no Facebook e Instagram (@ufscaroficial), além de contar com a participação da Rádio UFSCar. “Somos uma comunidade humana e plural. Combater todos os tipos de violência é importante para garantir o convívio pacífico e, mais que isso, permitir que as diferentes visões de mundo se encontrem e permitam, com isso, a construção de um conhecimento plural, diverso, elaborado a partir de diferentes pontos de vista, experiências e culturas. Não é possível viver em uma sociedade de paz sem combater todos os tipos de violência”, afirma o Secretário Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (SAADE), Vinícius Nascimento. “Cada pessoa da comunidade UFSCar precisa se enxergar como um instrumento dessa transformação. A mudança exige o trabalho diário, a partir do diálogo franco e do forte engajamento de todas e todos”, conclui Ana Beatriz de Oliveira, Reitora da Universidade.