02 de maio de 2024

Search
Close this search box.

Janeiro Roxo alerta para endemia oculta de hanseníase no Brasil

Crédito: Freepik

Doença não afeta somente populações em situação de vulnerabilidade e o país pode ter de três a cinco vezes mais casos de doentes do que os dados notificados

Começa em todo o Brasil a campanha Janeiro Roxo – Todos contra a Hanseníase, da Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH). A ação existe em caráter permanente desde 2015, com ênfase no primeiro mês do ano, oficializado pelo Ministério da Saúde desde 2016. O Brasil não é apenas o 2º país com mais casos – perdendo apenas para a Índia em números absolutos –, mas concentra mais de 90% dos doentes diagnosticados nas Américas e é o 1º no ranking mundial em taxa de detecção, ou seja, tem o maior número de casos novos em tratamento a cada grupo de 100 mil habitantes. 

A doença não se restringe às populações mais pobres. “O bacilo não escolhe condição social e a hanseníase é diagnosticada em pessoas ricas, pobres, brancas, pretas, pardas sem discriminação. A diferença é que pessoas em situação de vulnerabilidade social têm condições mais precárias de saúde e vivem em aglomerados onde se transmite mais intensamente o bacilo que causa a hanseníase”, alerta o médico Marco Andrey Cipriani Frade, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e presidente da SBH.

A hanseníase está na lista das doenças tropicais negligenciadas. São mais de 20 doenças, tratáveis e curáveis, porém ainda cegam, debilitam, desfiguram, incapacitam as pessoas, tiram crianças da escola, afastam pessoas do trabalho, do convívio social e de suas famílias. “O preconceito é um agravante importante no enfrentamento à doença. Há a crença de que a hanseníase não existe mais e muitas pessoas recusam o diagnóstico, outras são desdiagnosticadas por profissionais que não conhecem a doença e milhares passam por vários serviços de saúde públicos e privados ao longo da vida e depois de cinco, dez anos ou até mais recebem o diagnóstico de hanseníase quando a doença já é muito evidente e o paciente apresenta sequelas muitas vezes incapacitantes e irreversíveis”, explica Frade.

Preconceito

“Eu tinha muita febre e dores, até que minha patroa marcou uma consulta e fui diagnosticada com hanseníase. Quando ela soube, queimou todas as minhas roupas. Mesmo depois de curada, uma vez comentei no ponto de ônibus que fui curada de hanseníase, mas as pessoas saíram todas do ponto. Até hoje, sinto o preconceito”, diz a agente comunitária de saúde aposentada. Ela foi tratada no Hospital São Julião, em Campo Grande-MS.

A SBH entregou um relatório sobre os tipos de preconceito no Brasil com cerca de 40 páginas à Relatoria das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra Pessoas Afetadas pela Hanseníase e seus Familiares. O preconceito é presente e forte no Brasil. Exemplo são os casos de editais para contratação de pessoal que proíbem a participação de pessoas afetadas pela doença, sendo que o bacilo não é transmitido por pacientes em tratamento.

Endemia

O Brasil é considerado endêmico para a hanseníase pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Estados do Maranhão, Roraima, Pará, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Mato Grosso apresentam os maiores índices da doença. Segundo a SBH, ao contrário do que se pensa, as regiões com maior número de diagnósticos têm possibilidade de quebrar a cadeia de transmissão do bacilo mais rapidamente.

“O problema está em municípios silenciosos porque há perda notória de expertise dos profissionais de saúde em reconhecer a hanseníase em suas formas mais sutis na pele e com manifestações essencialmente neurais”, ressalta o presidente da SBH. A tese se justifica porque historicamente, nas localidades inicialmente sem registro de hanseníase e que recebem treinamento/capacitação de profissionais de saúde, campanhas educativas e busca ativa de casos, as notificações aumentam significativamente, o que mostra que a doença não está sendo percebida em milhares de municípios brasileiros.

A doença

“Hanseníase tem cura, se chegarmos cedo com o diagnóstico e tratamento”, diz o presidente da SBH. Mas como podemos falar em cura se o paciente é diagnosticado só depois que já desenvolveu sequelas incapacitantes sem possibilidade de reversão?”

O Bacilo de Hansen, causador da doença, afeta os nervos e tem lenta evolução. Por vários anos, o paciente sente dores, formigamentos ou fisgadas pelo corpo e não são raros casos de internação por enfarto. Com a evolução da doença, o doente pode apresentar manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele e diminuição ou perda de sensibilidade ao toque, à dor, ao frio e calor, dentre outros sinais e sintomas. A transmissão se dá de pessoa doente para pessoa saudável.

A fisioterapeuta Thania Loiola Cordeiro Abi Rached, membro da SBH e doutora pela Faculdade de Medicina-USP Ribeirão Preto, ressalta que é preocupante o número de diagnósticos tardios no Brasil, quando a doença já está em estágio visível e avançado. “O paciente chega com deformações nos pés, mãos, face, orelhas, com mãos em forma de garras, pés caídos e perda de movimentos com incapacidade para o trabalho”.

Casos no Brasil

Segundo o Boletim Epidemiológico da Hanseníase 2022, 19.963 casos novos foram diagnosticados no Brasil de 2011 a 2020 com grau 2 de incapacidade física, ou seja, com sequelas irreversíveis e incapacitantes. O boletim do Ministério da Saúde fala em 7,1% de casos novos de hanseníase diagnosticados já com grau 2 em 2011 e 10% em 2020. O documento ressalta que a proporção de casos novos de hanseníase diagnosticados com grau 2 é um importante indicador de diagnóstico tardio no país.

“Embora cerca de 10 mil casos novos não tenham sido diagnosticados devido à pandemia nos últimos três anos, não voltamos aos números de 2019 com cerca de 30 mil novos casos ao ano – número este semelhante às notificações de HIV/AIDS”, explica o presidente da SBH. A entidade alerta para uma endemia oculta de hanseníase no país e ressalta que o número real de doentes seja três a cinco vezes maior. Também é preocupante o número de casos em menores de 15 anos, o que indica contato da criança ainda muito nova com o Bacilo de Hansen.

Diagnóstico e tratamento

O diagnóstico precisa ser feito quando o paciente tem as primeiras manifestações como formigamentos ou dormências no corpo que, associados a outros sinais característicos, compõem o diagnóstico da hanseníase em exame clínico.

Exames de laboratório são capazes de detectar o bacilo em apenas 50% dos casos; os outros 50% apresentam sinais e sintomas que dependem de treinamento profissional para serem identificados. O exame clínico é suficiente. O Brasil recebe a medicação da OMS e o tratamento é gratuito nas unidades de saúde do SUS.

Mais um problema que agrava este cenário é que a hanseníase é tratada com uma combinação de medicamentos conhecida como poliquimioterapia, porém os antibióticos usados no Brasil e no mundo já têm mais de 40 anos e o país apresenta um número preocupante de casos de resistência do bacilo por falência de tratamento (paciente continua com bacilos vivos mesmo após concluir o tratamento) ou recidivas (volta da doença tempos depois da alta médica). O Brasil tem estrutura e tecnologia para produção de medicamentos mais modernos e de custo acessível.

Por que a doença é negligenciada?

Lamentavelmente, a hanseníase está entre as doenças com pouco interesse da indústria farmacêutica. Além disso, as escolas das áreas de saúde têm diminuído significativamente o tempo dedicado ao ensino da hanseníase, formando profissionais despreparados e inseguros para fazer diagnóstico. O tema não é tratado nas escolas como ocorreu até os anos 1990.

A SBH, com o apoio de inúmeros parceiros, tem promovido treinamentos/capacitações para profissionais da Atenção Básica à Saúde em várias regiões brasileiras, e retomou recentemente o curso de especialização para a formação de médicos hansenologistas, o que não acontecia há mais de 40 anos. Todo esse esforço conjunto tem resultado em aumento de diagnóstico nas regiões capacitadas.

Todos Contra a Hanseníase

O diagnóstico precoce, a prevenção de incapacidade física e o controle da doença podem ser conquistados com informação à população. A falta de informação é mais um problema a ser enfrentado. Para isso, desde 2015, a SBH tem a campanha nacional Todos contra a Hanseníase, ação permanente, mas intensificada no mês Janeiro Roxo, oficializado em 2016 pelo Ministério da Saúde para ações de conscientização sobre a hanseníase.

A campanha Todos contra a Hanseníase é parceira oficial do NTD World Day/Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, que ocorre em 30 de janeiro – esta, uma ação global para o enfrentamento das mais de 20 doenças negligenciadas no mundo. A campanha da SBH é um movimento educativo permanente, feito em unidades de saúde, hospitais, escolas, empresas, praças, parques, com distribuição da cartilha Todos contra a Hanseníase, rastreio de casos, iluminação de monumentos na cor roxa no mês de janeiro etc. Ações multidisciplinares de controle e conscientização podem quebrar a cadeia de transmissão do bacilo, como foi feito em países que conseguiram o controle da doença.

Compartilhe:

MAIS LIDAS